Thursday, November 15, 2007

Mi Casa, Su Casa, Alice's Casa

A Casa de Alice, 2006, de Chico Teixeira


Se o cinema brasileiro fosse o refeitório de um teen movie americano, surgiria por aí algo equivalente àquela sombria divisão de castas que se lança sobre as escolas de lá, separando em cada mesa uma ala específica do apartheid juvenil. A partir daí o leitor deve ter mais ou menos uma idéia de como funciona: é passar pelos corredores e esbarrar com todos os tipos de tipo. Desde patricinhas desalmadas que carregam a tiracolo de namorados atletas a próteses de silicone, até carteirados no clube do xadrez, com vida sexual majoritariamente estrelada em carreira solo – de preferência no banheiro de casa, depois de um ensaio fotográfico com a nova gostosinha de Lost, remixado com Daft Punk e desovado no youtube.

Sobrevoando sabe-se lá quantos outros clichês de gênero, o cine brazuca de hoje possui algo próximo daqueles assentos bem demarcados do refeitório, com levas facilmente identificáveis rodando sua película – ou seria bolsinha? – no circuito. É seguindo essa premissa que, quando vamos ao cinema, acabamos por nos alternar na mesa dos pára-poéticos A Via Láctea e Crime Delicado, dos fantásticos A Máquina e O Homem Que Desafiou o Diabo, dos urbanóides somehow melancólicos Jogo Subterrâneo e Não Por Acaso; sem esquecer o grupo dos históricos, dos engajados, dos regionais, dos arretados; sem deixar de lado, claro, risotos-pra-toda-festa como Cidade de Deus e Tropa de Elite.

A Casa de Alice, veja bem, também não é nenhum trend-setter na produção brasileira contemporânea. Pega carona na garupa de uma tendência naturalista já observada em Cão Sem Dono, O Céu de Suely e Contra Todos. No primeiro longa-metragem ficcional de Chico Teixeira, bem acolhido tanto pela imprensa da casa quanto pela internacional, a vida secreta das pessoas pequenas constitui a matéria-prima para um filme que possui, se não êxito, pelo menos o desejo de se manter em estado bruto. Lá, afinal, batem ponto os esforços em prol de interpretações e iluminação “espontâneas” – e Oxalá nos salve de músicas incidentais e outros artifícios maiores que lembrem ao espectador que aquilo tudo que se vê no cinema (a arte das aparências por excelência, vale lembrar) é da carochinha.

Em tempo: A Casa de Alice é um filme de personagens. E como qualquer naturalista que se preze, de personagens pequenas. Uma manicure de meia-idade que vive com filhos, mãe e marido na periferia de São Paulo não é exatamente candidata à Miss Hepburn 2007. Para contar a história pequena de personagens pequenas, lá consta a ausência de uma vontade maior de realizar um pacto narrativo bem selado, que dê às situações – igualmente pequenas, óbvio – apresentadas no filme caráter mais definitivo que insinuativo (e de fato a narrativa deixa algumas portas em aberto, como as relações entre caçula e primogênito e caçula e mãe, embaladas numa suspeita por vezes sexualizada, mas sem grandes certezas empurradas goela abaixo do espectador). É uma forma de fazer filme. Uma das muitas. Bastante válida, por sinal. Mas que pode escorregar com certa facilidade numa pista ensaboada por psicologismos baratos, pronta a amassar suas personagens numa fôrma psicossocial a priorizada – chegando a reconhecer suas particularidades mas não resistindo, no final das contas, àquela velha tentação de tratá-las como expoentes estatísticos de “uma sociedade contemporânea em estado de implosão afetiva”, yadda yadda yadda.

Ou seja, o típico filme que, sem querer dizer muita coisa, tenta dizer tudo e corre o sério risco de acabar não dizendo nada. Chico Teixeira não vai de todo mal ao tentar driblar esse obstáculo. Conduz a protagonista Alice (aliás, em crítica praticamente unânime ao trabalho excepcional de Carla Ribas), é verdade, com certa vontade de chocar, de ‘fazer ver’ o quão insensíveis marido e filhos – e a vida em geral – podem ser com ela. O que pode, diga-se, ser fatal para um cineasta que deseja antes insinuar do que empurrar verdades bem consolidadas. São, contudo, algumas sutilezas, bem como uma relação harmoniosa entre roteiro, direção e elenco, que somam pontos ao trabalho cuidadoso de Teixeira, fazendo-o pender mais para o lado das excelentes obras de Brant e Aïnouz do que para o apelativo Contra Todos, do também estreante Roberto Moreira.

Uma dessas sutilezas se encontra em momentos aparentemente banais, que prevalecem sobre reações sentimentalistas (mais naturalismo, saca?) da protagonista à – recente ou constante? – crise em sua vida. Momentos como as cervejas com a amiga no bar: uma embriaguez despretensiosa, em vez de carregada com reviravoltas dramáticas, como poderia se esperar naquelas horas em que qualquer vestígio de superego já está dançando a Macarena em cima da mesa de acrílico descascado no boteco mais sujo da cidade. Outra óbvia, mas ainda assim boa sacada se dá nos problemas oftalmológicos de dona Jacira (Berta Zemel), mãe de Alice e, ironicamente, única pessoa da casa que parece ter olhos lúcidos a tudo que se passa lá dentro. E no final das contas é por aí mesmo: A Casa de Alice tem lá seus delírios de se insinuar como um verdadeiro ensaio sobre a cegueira que fecha olhos para os valores cambaleantes da sociedade brasileira. Não precisava de tanto, não, Chico. Ser um bom filme já está de bom tamanho.

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