Sunday, June 19, 2005

Hang the writer

Um texto que não deveria ter sido, em 553 palavras.
O mais provável é que o Homo cinefilium tenha nascido nos anos 70 como possível resultado do cruzamento entre intelectuais de esquerda da época, que eram conhecidos por praticar a Revolução Sexual pelo menos três vezes ao dia e quiçá utilizar a palavra “quiçá” sempre que possível. Fruto de uma formação familiar alternativa porém rigorosa, esta curiosa espécime foi desde cedo orientada a seguir o caminho das Belas Artes, embora as Feias Artes, as Ainda Mais Feias Artes e as Realmente Assustadoras Artes costumassem fazer muito mais sucesso entre o público feminino da época - êxito em parte garantido pela performance deliciosamente contemporânea de Flaubert que o trio apresentava em bares da vizinhança, numa inusitada releitura nietzschiniana em que Madame Bovary mata Deus com uma letra minúscula e se casa com seu cavalo de corrida no final.

Evidente que, a partir de um certo ponto, gostar de cinema passa a ser prova inconteste da superioridade intelectual de um sobre outrem. Ora, o raciocínio, ao menos à primeira vista, parece óbvio, uma vez que, para a maioria das pessoas, nada parece durar tanto quanto um filme iraniano (embora um jogo de xadrez entre um homem e sua dupla personalidade já tenha confundido alguns teóricos do assunto no passado). Tudo bem que a maior parte da humanidade não consegue ver um filme de Godard sem deixar que sua mente se distraia com pensamentos como contas atrasadas, inversão térmica ou dominação global, mas o que isso deveria provar?

Certamente nada com un peu de tudo. Não obstante haja muito cinéfilo por aí se vendendo como a bolacha mais recheada do pacote, o simples fato de gostar de gostar de cinema não faz ninguém desabrochar em fina flor do intelectum brasileiro de uma hora para outra. Não é nem tão simples, nem tão fácil assim. É preciso muito mais. Ou menos. Menos arrogância, menos pedantismo e, definitivamente, menos certezas de que a fatalidade do mundo cabe nunca casca de noz, uma vez que um ônibus 174 começa tão-somente a esboçar a dimensão do problema.

Pois: as aparências não têm outra função se não a de enganar o próprio e o próximo, não obstante alguns psiquiatras já tenham alertado que, no fundo, tudo o que elas querem é um pouco de atenção. Todo mundo é o que é, com a exceção de que poderia muito bem ser outra coisa. Logo, um homem não deveria jamais ser julgado simplesmente pelo que vê, pensa ou veste (a não ser que ele faça os três muito mal).

É mais seguro ser pseudo-intelectual ou ignaro confesso? Nenhum dos dois, se você tem quarenta anos, usa suspensórios e mora na casa da sua mãe. É verdade que poucas coisas são tão dolorosas para um cinéfilo quanto constatar que existe vida inteligente fora das salas Espaço Unibanco - principalmente se ela costumava roubar o seu lanche na hora do recreio. Se existem jeitos mais preguiçosos e menos onerosos de catalogar a inteligência de alguém, a história é completamente diferente: tratar a Sétima Arte como suplemento vitamínico para o QI é um argumento que peca tanto pela deficiência quanto pela leviandade de suas pretensões. Melhor tomar suco de laranja mecânica ou ouvir Mozart na barriga da mãe. Aconselho a sinfonia nº40 em sol menor. Inteligência garantida ou o seu dinheiro de volta. Palavra de Adorno.