Friday, February 23, 2007

Matou a família e foi ao cinerama

Há quem diga que aqueles foram o melhor de todos os tempos, o pior de todos os tempos. Há quem diga que éramos jovens, calouros e, redundantemente, todos estúpidos. Que não pintávamos cabelo. Platinado. Que não fumávamos haxixe. Ainda. Que não discutíamos a filmografia coreana de 1934. Sundance. Que foram vacas profanas, que foram vacas sagradas. Vacas loucas. Nunca gordas. Há quem diga que o tempo, embora seja o melhor professor, acaba matando todos os seus alunos. Talvez mate. Torture e mate. Pode-se morrer de ostracismo ou de indigestão, não importa. Como aquele pastel de carne seca com catupiry que transforma sua aorta na Av. Brasil parando para um desfile da Victoria’s Secret em plena hora do rush. Algumas velas acesas, o corpo estirado na calçada, dois ou três olhares mais curiosos. Morte é morte. Matada ou morrida.

Por um bom tempo, achei que do Cinerama não se podia esperar nem mais, nem menos. Assim em sua dose cowboy, sem gelo, não haveria câmara criogênica que livrasse nosso projeto de cair de cabeça (até o último fio) e sola na verdadeira São Silvestre – lycra rosa, em pas de deux, 100m com barreira – rumo ao Vale da Morte. Primeira parada. Aqui mesmo, motorista, e tenha um bom dia. Afinal de contas, a idéia de cine que se tinha em mente, desde então, já nascera com um pé enfiado numa cavidade muito particular onde o sol não bate.

A cova.

Um cineclube? Não se tratava de tudo isso. Não se tratava apenas disso. Do jeito que voltou (third time around) ao mundo, o Cinerama não chegou a contar com um cenário pra lá de animador. O rendimento das reuniões, regadas a cerva do Seu Manoel, esvaía-se com a mesma rapidez da primeira rodada da mesa. Mini-cartazes em P&B, formato a4 e design tão atraente quanto a gaveta de lingerie de Ruth Cardoso funcionavam com a eficácia de um prólogo shakesperiano confiado ao potencial dramático de Fernanda Lima (“Romeu e Julieta 4ever – Uma História de Amor”, 2007, Brasil”). Os filmes, escolhidos a esmo profissional, ora lotavam a sala com o cacife culturale de François Truffaut (Jules et Jim), ora dividiam espaço com as duas moscas e os três gatos pingados que compareciam para conferir o mondo trasho de Álex de la Iglesia (A Comunidade).

De fato, nem tudo eram flores. Quando o eram, havia os espinhos. Ou o fedor. Ou davam alergia. Ou enfeitavam a lapela do Tony Ramos. Jardineiros da Babilônia ecoína que jamais fomos, hoje creio que conseguimos podar, com o nosso amadorismo, o verdadeiro Crime Ferpeito. Se não se tratava de um legítimo Caso de Amor, o Cinerama era como se fosse aquela amante de toda uma vida. Ao menos uma vez por semana, toda uma noite era dedicado aos seus deleite e capricho – e na semana seguinte, nunca deixávamos de voltar. A cada começo de semestre, a paixão era renovada com uma caixa de bombons que vinha em forma de calouros fresquinhos e achocolatados, todos saídos da Oficina do Cinerama, oferecida na Semana de Calouros desde o último semestre de 2005. De lá, somaram-se à equipe Amanda Meirinho (2005/02), Isabel Stein (2006/01), Caroline Gomes (2006/01) e Rodrigo Vaz (2006/02).

Se por um lado o Cinerama só fez ganhar com a cooptação de novos integrantes, o gradual desfalque na velha guarda não passou despercebido. Reativado em maio de 2005 com A Estrada Perdida de David Lynch, o projeto contou, no início, com a participação de Ricardo Senra, Bruno Boghossian e Ana Carolina Bento Ribeiro, além da módica escritora que vos fala, todos nativos do sítio arqueológico que é hoje a leva de calouros de 2004/01. Havia ainda a presença da veteraníssima Maria Flor Brazil (2003/02), responsável pela segunda geração do Cinerama – a qual já havia levado nós quatro, então calouros, à sala capenga do PACC para O Anjo Exterminador de Buñuel, entre outros.

O que mudou desde então? Ao primeiro fotograma a se desembaraçar na tela, o espectador médio dá um gole em sua coca-cola e, de uma só galfada, empunha pipoca o suficiente para fazer de uma pré-estréia com Hillary Duff a maior empregadora de catadores de milho da costa oeste. Com um cineclube que se propõe como alternativa ao filão pop de grupos como o Cinemark, tudo muda. Pra pior. Mas no melhor dos sentidos (ou seria das intenções?). No caso do Cinerama em particular, o público permanece tão oscilante quanto a certidão de casamento de Elizabeth Taylor. Os cartazes rudimentares, reproduzidos de graça pela xerox de qualidade duvidosa do C.A., acabam passando batido na selva de celulose que se entranha por corredores, cortiças ou qualquer superfície lisa dando sopa na faculdade. As agruras não são poucas. No entanto, tampouco a vontade de deixar coalhar o leite derramado.

É preciso, pois, muito mais que um botão e um dedo para apertá-lo para dar início a uma sessão de cinema. Com a adição do novo bolsista no último processo de seleção, Diogo Cunha (2004/02), o projeto ganhou fôlego olímpico. Em 2007, o Cinerama quer fazer da sua terceira geração também a definitiva. É claro que sessão vazia dá aflição. Imagino que, ao menos uma vez na vida, todos os grandes cineclubes já tenham passado por tamanho suplício. Como barulhinho de lixa. Giz no quadro-negro. Punheta no sofá da Hebe. Uma gracinha. Só que mais para quem faz do que para quem vê.