Sunday, December 11, 2005

So let your fists do the talking

Meu amigo, ser fudido é uma arte a qual muitos poucos dominam. Porque, merda por merda, qualquer babaca com um maçarico, uma fatia de queijo e uma lycra rosa é capaz de fazer. Ser fudido, no entanto, é uma coisa completamente diferente. Quase cósmica. Quiçá mágica. Acima de tudo – cármica. Para começo de conversa, ser um deles requer preparação física e sobretudo mental, de modo que esperar que o Pior dê as caras pelo menos sete vezes na semana se torne uma raison d’être tão festejada quanto dia de botox nos lábios da Angelina Jolie. Ser fudido é deixar de nutrir a esperança de que, em um dia festivo e alegrinho, quando alguém lá de cima ou cá de baixo te der um tapinha nas costas como se hoje fosse seu dia de sorte, seu canalha!, socos no estômago não se transformem em úlcera anal e as portas da esperança te levem a um lugar mais agradável que aquele banheiro sujo do motel mais chinfrim da beira de estrada. Carajo, Bandini. Esquece essa porra de primavera. 2005 foi um ano ruim. O ano que vem provavelmente também o será. Se der sorte, nada muda. A merda continua. Caso contrário, ela atinge o ventilador, metaforiza sua vida, literaliza seu destino, mancha tua lapela e cobra a conta da lavanderia. Meu amigo, ser fudido é uma escola que toma tempo para ser diplomada. É levar nas coxas e nas fuças uma vida em total descompasso com a sua vontade e compreender que, acima de tudo, se fuder não é para todos, mas é para sempre. And then, wham! É dar dó e marcha ré para suportar o mifafá que entoa o cântico desse artista de tempos coevos, um ser fadado a estancar como least but not last até que o raio o parta, a morte os separe e a história se repita (mas só quando ninguém estiver prestando atenção). A coisa consiste em desenvolver cujones (ou textículos, para os lixeratos) para se fuder com classe, com estilo, com ginga. Todo mundo pode ser um dos nossos, mas ninguém pode deixar de o ser. Porque se fuder é se fuder, mas ser fudido, meus caros, ser fudido é definitivamente outra coisa.

Saturday, November 19, 2005

Eu acho que é isso que eles chamam de blues

Aprendi muito com quem não sabia nada. Mais ainda com quem conhecia porra nenhuma. O filme ainda nem começou, os óculos-quadrados-de-armação-preta tomam aos poucos o contra-campo e algumas moçoilas metidas em rouptichas dentro do fora da moda discutem em godardês um Trufô sabor nouvelle-vague. Por que algumas pessoas preenchem o requisito de supermaravilhosas, enquanto outras você tem vontade de acaçapar no bolso esquerdo da calça de strecht de J-Lo pruma partida de dança das cadeiras?

Adestro a pulga atrás da orelha e me volto pra tela. No pontapé do começo: é francês e vai mudar a minha vida. No mesmo instante capto com o rabo do olho um garoto magrinho e inquieto, com ares de quem boghobou três listras para o seu casaco-espetáculo, e rimos à beça, talvez por perceber que a vida não tem sentido se você for a décima-quinta linha de uma biografia da Paris Hilton, mas principalmente ao descobrir que ainda mais improcedente, for the average man, seria dividir sua kitschnette com ecce homo tão high-profile na statusfera da boiolindiece cultural do Homo cinefilus (A Tangerina, in: Hang the writer, 2005, dadá).

Masscult? Indústria Cultural? Audiência infantilizada? Cultura de pastiche? Adorno de touquinha entonando aaaaaaaau bái mái céeelfff? Nem sombra, nem dúvida. Toda a ação se passa às favas com qualquer qüiproquó popular que não calhe de virar o darling da vez dessa inteligentzia de cabelo meticulosamente desgrenhado e cérebro mais ainda. Ou seja: explico. Porque é claro que todo homem se comporta de acordo com o que é esperado dele. Existem pessoas dotadas com a capacidade ímpar de chacoalhar ‘e’ rolar com uma leitura de Horkheimer e pular carniça ao mesmo tempo. Outras, por sua vez, permanecem condenadas a ter uma vida sexual.

Lá no fundo da caixola, a ponderação bate e fica pra jantar. Ainda que a contra-gosto, aceito a convidada e troco a magia a dois, o menáge a três e o diabo a quatro do cinéma de Godard e cia. pelo charme discret de la indieoisie esparramada do lado de cá da tela. Pois sim. Alguém deveria fazer uma religião para ela. Criar modalidade olímpica. Deduzir do imposto de renda. Sim, bâibe! She’s trying too hard. Quase engana com o suspensório do vovô, os sapatos Karl Marx e essa manha trendy, cult, unique, cool, marginal, hype, supermaravilhosa que nem te conto.

Nunca levo um intelectual a sério. O problema é que eles se levam. Que joguem a primeira pedra, a lenha, os buttons, o uísque sem gelo, o sal, a calça xadrex pro lado de lá e cabelos ao vento rebentando no frug da pseudo-intelectualidade. Que digam em setecentas laudas o que poderia ter sido dito em uma sílaba sem ponto-e-vírgula com exclamação – sem deixar faltar chá. Sob a ameaça das bofetadas da metalinguagem, a autora consente: era o fim do mundo como nós o conhecíamos. Quem sabe, cala. Quem não sabe, dá aula. Quem não sabe dar aula, cria um blógui. Ah, ecce homo!

Friday, October 28, 2005

Assim falou Zaccarias

Eram jogados 1987 e calhou de nascer (terceira) pessoa (do) singular . Para se largar na náite à procura de chão chão chão em qualquer programa de indie que topasse na sua frente, com duas pedras de gelo para acompanhar, por favor. À garota! desempedida e todas as vezes que uma xícara derrubou café na sua vida. Que tal: jornalismo com vírg,ulas, all-star surrado – pretû, de cano alto -, chorar pitangas, carreira empacotada, blues de domingo, torradeiras e aspargos, cabriolas e olhos de ressaca e de decalque e – ela era - algo. Assim assim. Um plágio. Um atentado ao pudor. Metáfora gastronômica com uma pitada de inconstância e duas doses de paradoxo para falartãorápido mas baixinho – psiu, ei! E ele disse: “Tira essa blusa, mocinha”, e então: “Tira essa blusa e vem curtir esse tal de róquenrôu!”

Quer saber?

Frankly, my dear, I don’t give a damn.

Wednesday, August 31, 2005

O que Allen diria a Virginia, livro I: se os dentistas fossem músicos

Caro G.,

Enfim, livre! As aulas acabaram e posso finalmente voltar a me dedicar à música. Você acredita que o meu professor de periodontia odontológica me reprovou só porque confundi a arcada inferior do Sr. Leônidas com a capa do novo CD do ...Trail of Dead? Ele é tão quadrado e burguês que às vezes me dá vontade de invadir sua casa e trocar todos os quadros de lugar! Estou certo que ele não reconheceria arte contemporânea nem se ela bochechasse na sua cara. Ah, meu caro F.! Estou cada vez mais desconfiado que o verdadeiro espírito artístico é privilégio de poucos – caso contrário, estou certo que meu paciente não teria se mostrado tão obtuso à idéia de extrair seus molares para pô-los como reticências no encarte do próximo disco. Mas que gentinha mais desprezível, e que mania irritante de usar sapatos! Evidente que, depois desse infeliz episódio, tive que ligar para mamãe e pedir que enviasse mais dinheiro, de modo que a Escova de Dente de Ouro pôde continuar os ensaios no estúdio sem que fosse preciso que eu chantageasse o estudante kantiano do sexto período sobre seus hábitos de sair por aí mexendo no imperativo categórico dos outros sem usar agulhas descartáveis – o que só não seria incômodo para um paciente que tivesse sido anestesiado com doses maciças de leitura frankfurtiana. Nossa primeira faixa, Canal no Panamá, já está em fase de produção e contará com a participação do Dr. L., o melhor dentista da região, que acionará seu motorzinho toda vez que nosso vocalista fingir dor de barriga no refrão. Se ao menos papai estivesse vivo, tenho certeza que ele sentiria muito orgulho de mim – e deixaria de fingir que não me conhece nas festas de família. Ah, Hegel.

F.

Wednesday, July 13, 2005

Ela é uma loura notável: boxa, dança, pula, rema


"Perca peso e ganhe um olho roxo. Pergunte-me como."

Monday, July 04, 2005

Morrer é uma questão de método

Poucas coisas na vida despertam tanto a curiosidade do homem quanto a morte, mas a verdade é que não se sabe muito sobre ela – exceto que ela gosta de se vestir de preto e que volta e meia pode ser vista entoando Another One Bites the Dust em bares de karaokê vitorianos (embora existam muitos poucos desses hoje em dia). Há, afinal, vida após a morte? E quanto a nossa alma, será ela imortal ou apenas megalomaníaca?

Existem várias teorias sobre a morte, mas absolutamente nenhuma delas explica a aplicação da Lei da Relatividade na gastronomia étnica de nosso país (talvez porque, nas palavras de um ilustre expoente da sociedade científica que não quis se identificar, "nós possamos ter-nos desviado da nossa linha de pesquisa em algum momento"). Como muitas pessoas já desconfiavam, bater as botas é, no fundo, o menor dos nossos problemas (contanto, naturalmente, que você se sinta bem com a cor do seu cadarço). O que acontece depois é, isso sim, o verdadeiro mistério. Para onde vamos, quanto tempo demora para chegar lá e que tipo de roupa devemos levar são perguntas que já passaram pela cabeça de todo mundo pelo menos uma vez na vida, seja ele o moribundo tísico, o atleta saudável ou a sua tia distante que lhe manda uma boneca todo Natal (embora você se chame Ernesto e tenha 26 anos há até bastante tempo).

Quem, afinal, paga a conta de luz para que você possa ter todo aquele espetáculo pirotécnico no fim do túnel que sempre lhe prometeram? Certamente não os seus parentes, que ainda estarão se desdobrando - literalmente, se você pertencer a uma família de contorcionistas - para pagar todo o ônus funerário de sua morte enquanto você toma banana daiquiris no céu (ou no inferno, caso você seja ateu, advogado ou simplesmente um pé-no-saco) e discute a arte da jardinagem filipina com Alfredo, um carteiro que faleceu no ano anterior graças a um sinistro ataque de fúria por parte de anões belgas que andavam se sentindo marginalizados pela sociedade capitalista e opressora. Quanto ao seu plano de saúde, como pedir para que ele pague por sua luz no fim do túnel se ele sequer cobria suas despesas dentárias quando você estava vivo? Deus, a opção que para muitos poderia ser apontada como a mais plausível e justa (talvez porque Ele seja a única entidade sobrenatural que tenha American Express, embora haja os que digam que é puro exibicionismo de Sua parte), tampouco: com tantas guerras, enchentes e penteados dos anos 80 mundo afora para serem enfrentados, todo o trabalho burocrático não resistirá muito antes de ser relegado para as instâncias inferiores.

Mas quem são essas instâncias inferiores, uma pessoa razoável poderia questionar (ou simplesmente pular o assunto e, no lugar, começar a fazer um curso de estenografia por correspondência, uma vez que ela é uma pessoa razoável esclarecida e faz o que bem entender). Para a Grécia Antiga, elas se chamavam Cloto, Laquesis e Atropos e eram conhecidas como as Parcas, figuras mitológicas que controlavam os fios da vida e decidiam quem morria ou não. A Grécia Moderna já não pensa mais assim, embora continue faturando horrores no mercado têxtil temático.

Já grande parte do Ocidente gosta de acreditar que os anjos são os funcionários públicos do Paraíso. Daí inclusive teria originado a idéia de anjo-da-guarda: enquanto Deus se ocuparia com tarefas de escala mais global – como eras glaciais e chuvas que duravam 40 dias e 40 noites (o que era uma grande sacanagem com todos aqueles que não detinham o monopólio das construtoras de arcas) -, os anjos estariam empenhados numa missão mais individual e menos sensacionalista. Todavia, a imagem pulcra e nobre que temos do exército do Senhor é altamente questionada pelos Letrismo, uma escola histórica pouco afamada que crê que a Bíblia nada mais foi do que uma sopa de letrinhas que Deus acidentalmente deixou derramar durante uma briga com Zeus a respeito de marcas e patentes. Para os letristas, apesar da versão oficial nos contar que Deus teria descansado no sétimo dia, a verdade seria que, irritados com a fama de que passavam o dia tocando harpas que seria espalhada num futuro longínquo pelo homem – a mais recente e mimada criação divina -, os anjos teriam feito a primeira greve da história e se recusado a completar tarefas como a paz mundial e o Grand Canyon. (Rezam as lendas que, como punição, a ira divina teria lhes tirado o sexo e ainda ganho uma fortuna ao patentear os bonecos Ken.)
A morte varia de cultura para cultura, de época para época e de pessoa para pessoa, não obstante seus contínuos esforços para entrar na era da globalização. Não podemos, por exemplo, tentar entender como um aristocrata via a morte em plena Revolução Francesa, embora alguns relatos de sobreviventes nos digam que ela parecia um pouco afiada demais para seus pescoços. Até podemos andar pelo vale da sombra da morte sem temermos mal algum, mas nossos passos nunca serão iguais aos de outra pessoa. Para uns dolorosa, para outros, uma bazófia; o começo para um pai e o fim para um filho; uma redenção ou um pesadelo: a morte é uma essência que nem a pena dos mais afiados escritores conseguiram transpor integralmente para o papel (embora um mico adestrado tenha chegado muito perto uma vez, mas isso não passou de uma assombrosa coincidência).

Sunday, July 03, 2005

Deus, nozes e outras considerações

No início, Deus criou o céu e a terra e, talvez por decidir que um mundo sem jazz, abridor de lata e McLanche Feliz não teria graça nenhuma, resolveu criar o ser humano. É verdade que sua intenção inicial era colocar-nos acima do bem e do mal, mas esse andar já estava ocupado pelo departamento de Assuntos Infernais e, desde então, a sala do almoxarifado do sistema solar passou a ser chamada de Terra. Desde então, entediado das trevas, Deus ordenou que se fizesse luz, mas por conta da temporada de apagões pela qual o universo no período, Ele teve que criar o dia e, como medida econômica, a noite. Logo depois, interessado em sediar os jogos olímpicos da galáxia (que aconteciam de quatro em quatro anos-luz), Deus tentou agilizar o projeto e acabar a Terra em sete dias, mas o Comitê Olímpico Lácteo achou que ainda não havia estrutura suficiente para um evento de tamanha dimensão, até porque havia muitos vulcões em ativa na época e um dos avaliadores tinha alergia a enxofre.

A raça humana, como todos sabem, é a espécie mais inteligente do planeta, uma vez que é a única espécie capaz de refletir sobre o seu próprio reflexo, falar da própria fala e se conscientizar acerca da própria consciência, e isso tudo enquanto combina a cor da meia com a da gravata. E mais: a humanidade gosta de debater sobre física quântica, falar sobre ela na terceira pessoa e, sempre que pode, faz questão de jogar na cara dos outros animais o tal do lance dos polegares opositores (o que, modéstia dEle à parte, foi essencial para que o homem pudesse manusear ferramentas, jogar fliperamas e estourar plásticos-bolha). Inventamos o macarrão instantâneo, os programas de auditório e gostamos de tomar sopa com colher, embora estudos já tenham comprovado que o canudo, nesse caso, é muito mais apropriado para evitar queimaduras na boca.

Deus que nos fez à sua imagem e semelhança, o que torna um tanto estranho o fato de alguns de nós parecermos com Janet Reno ou com o Sr. Madruga. Concedeu-nos o livre arbítrio para que pudéssemos exercer nosso pleno direito de implantar ditaduras, entupir-nos de carboidratos ou simplesmente andar na rua com uma caixa com os dizeres "cabeça humana", mas só pela graça disso. Contudo, nada disso tira d’Ele o Cinturão de Criador, O Princípio de Todas as Coisas, o Onisciente, Onipresente, Onipotente e Tudo o Mais. Afinal, estamos falando de um cara que já acumulou em sua estante uma quantidade respeitável de prêmios, como o Grande Prêmio de efeitos especiais por todas as Grandes Guerras, a melhor intervenção divina no Festival Internacional de Milagres com o cancelamento de Baywatch e que, nos tempos vagos, ainda concorreu para Miss Divindade Via Láctea (que teria ganhado de Alá, se não fosse por aquelas duas polegadas extras no quadril).

Cara de muitos amigos, ainda mais inimigos e quatro ou cinco simpatizantes, Deus é tema de um sem-fim de fãs-clubes, sociedades secretas, grupos terroristas e, numa cidadezinha mineira, ainda dá o nome para um pequeno sex-shop atrás da vídeo-locadora da cidade. Deus é, de fato, onipresente: está no pão nosso de cada dia, na maioria das letras de pagode e no discurso de tudo quanto é político às vésperas de eleição. É verdade que, ao longo da nossa história, Deus já morreu várias vezes e de várias formas, inclusive de tanto rir com cada nova tentativa do homem em tentar achar o sentido da vida (que Ele mesmo não sabe qual é, embora tenha, nos últimos séculos, desenvolvido uma teoria de que possa ser o fato de milhões de árvores no mundo serem plantadas acidentalmente por esquilos que enterram suas nozes e não lembram onde eles as escondem). Ainda hoje muitos de nós perguntarmos se Deus realmente existe ou se Ele seria uma invenção que a humanidade criou para aliviar seu profundo sentimento de desamparo existencial, uma vez que vivemos num mundo com tanta miséria, unhas quebradas e homens que se chamam Astrogildo. Deus já foi sepultado pelos positivistas, rejeitado pelos niilistas e transformado em caixinha de dízimos pela Igreja Universal - e isso sem falar nos agnósticos, que andaram espalhando por aí que Deus teve um filho com Britney Spears só para difamar Sua imagem -, mas ainda assim continua, trocadilhos à parte, com os índices de popularidade lá nos céus. O fato é que a humanidade ainda não está preparada para se livrar d’Ele de uma vez por todas, até porque o ateísmo não tem nem tanta graça, nem tantos feriados. Ainda teremos Sua presença garantida por muito tempo em nossa vida. Ícone pop por excelência, Deus estará sempre conosco no planeta que nos arrendou para que reinemos soberanos, até que um dia um garoto canadense esqueça de dar a descarga na escola e, por algum motivo fora de qualquer compreensão possível, este fato desencadeie uma cadeia altamente improvável de acontecimentos que resultará na invasão do planeta pela raça alienígena Ordnave, que detestará cada pedacinho de matéria terrestre, com exceção de pretzels (que os lembrariam da forma de seu planeta de origem) e do cabelo da Cher (para isso, não haveria qualquer tipo de explicação lógica). Amém.

Sunday, June 19, 2005

Hang the writer

Um texto que não deveria ter sido, em 553 palavras.
O mais provável é que o Homo cinefilium tenha nascido nos anos 70 como possível resultado do cruzamento entre intelectuais de esquerda da época, que eram conhecidos por praticar a Revolução Sexual pelo menos três vezes ao dia e quiçá utilizar a palavra “quiçá” sempre que possível. Fruto de uma formação familiar alternativa porém rigorosa, esta curiosa espécime foi desde cedo orientada a seguir o caminho das Belas Artes, embora as Feias Artes, as Ainda Mais Feias Artes e as Realmente Assustadoras Artes costumassem fazer muito mais sucesso entre o público feminino da época - êxito em parte garantido pela performance deliciosamente contemporânea de Flaubert que o trio apresentava em bares da vizinhança, numa inusitada releitura nietzschiniana em que Madame Bovary mata Deus com uma letra minúscula e se casa com seu cavalo de corrida no final.

Evidente que, a partir de um certo ponto, gostar de cinema passa a ser prova inconteste da superioridade intelectual de um sobre outrem. Ora, o raciocínio, ao menos à primeira vista, parece óbvio, uma vez que, para a maioria das pessoas, nada parece durar tanto quanto um filme iraniano (embora um jogo de xadrez entre um homem e sua dupla personalidade já tenha confundido alguns teóricos do assunto no passado). Tudo bem que a maior parte da humanidade não consegue ver um filme de Godard sem deixar que sua mente se distraia com pensamentos como contas atrasadas, inversão térmica ou dominação global, mas o que isso deveria provar?

Certamente nada com un peu de tudo. Não obstante haja muito cinéfilo por aí se vendendo como a bolacha mais recheada do pacote, o simples fato de gostar de gostar de cinema não faz ninguém desabrochar em fina flor do intelectum brasileiro de uma hora para outra. Não é nem tão simples, nem tão fácil assim. É preciso muito mais. Ou menos. Menos arrogância, menos pedantismo e, definitivamente, menos certezas de que a fatalidade do mundo cabe nunca casca de noz, uma vez que um ônibus 174 começa tão-somente a esboçar a dimensão do problema.

Pois: as aparências não têm outra função se não a de enganar o próprio e o próximo, não obstante alguns psiquiatras já tenham alertado que, no fundo, tudo o que elas querem é um pouco de atenção. Todo mundo é o que é, com a exceção de que poderia muito bem ser outra coisa. Logo, um homem não deveria jamais ser julgado simplesmente pelo que vê, pensa ou veste (a não ser que ele faça os três muito mal).

É mais seguro ser pseudo-intelectual ou ignaro confesso? Nenhum dos dois, se você tem quarenta anos, usa suspensórios e mora na casa da sua mãe. É verdade que poucas coisas são tão dolorosas para um cinéfilo quanto constatar que existe vida inteligente fora das salas Espaço Unibanco - principalmente se ela costumava roubar o seu lanche na hora do recreio. Se existem jeitos mais preguiçosos e menos onerosos de catalogar a inteligência de alguém, a história é completamente diferente: tratar a Sétima Arte como suplemento vitamínico para o QI é um argumento que peca tanto pela deficiência quanto pela leviandade de suas pretensões. Melhor tomar suco de laranja mecânica ou ouvir Mozart na barriga da mãe. Aconselho a sinfonia nº40 em sol menor. Inteligência garantida ou o seu dinheiro de volta. Palavra de Adorno.